Histórias de Dona Guiomar
escritas por Nereide S. Santa Rosa
Fevereiro 16, 2001
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Recordações dos antigos carnavais de São Paulo
Fevereiro...carnaval...
Imaginem que houve um tempo que carnaval era, simplesmente, sinônimo de alegria.
Os abastados paulistanos, donos das grandes mansões da Avenida Paulista, eram os grandes foliões
Carnaval de pompa...
Carnaval dos barões do café e tradicionais famílias "quatrocentonas".
A já famosa Avenida Paulista do início do Século XX (foto à direita) era palco de festas e folias.
Hoje ainda é um local de encontro para comemorações seja de campeonatos de futebol, seja o reveillon...
Mas naquele tempo, cercada de árvores frondosas e verdadeiros palacetes, a avenida permitia um carnaval divertido, sadio e até mesmo inocente.
Tive a oportunidade de constatar e testemunhar esses carnavais do velho São Paulo.
Era o ano de 1924. Tarde de domingo de carnaval. Ainda morava na Rua Augusta, na leiteria de meus pais. Com apenas seis anos de idade eu, minha mãe e meus dois irmãos, Alberto e Sebastião, fomos andando até a avenida.
As casas imensas chamavam a minha atenção e me deixavam maravilhadas...
Os jardins das casas já estavam enfeitados com serpentinas.
E todos esperavam para assistir o corso...isto é, o desfile de carros antigos pela rua...Notem bem que o carnaval tinha que ser comemorado durante o dia, pois a luz dos lampiões a gás era fraca e a escuridão era muita para se festejar a noite.
Chegava gente de todos os lugares...
Os moradores, fantasiados, circulavam pelas calçadas até entrarem em seus carros conversíveis. Fantasias riquíssimas. As preferidas eram a de Maria Antonieta com vestidos rodados e imensos. Ficavam acomodadas acima da capota que ficava abaixada nos carros, sentadas com muita pompa e orgulho.
Arlequins e Colombinas, então, eram em grande quantidade . Eram tantos que permaneciam de pé nos estribos dos automóveis para facilitar os movimentos.
Para mim, uma pequena garota, assistir a tudo isso, era simplesmente fantástico. Ficávamos sentados a meio-fio, na beira da calçada, observando tudo, comentando e se divertindo.
E finalmente chegava a hora do corso.
Todos embarcavam nos carros e a fila de automóveis seguia pela avenida de uma ponta a outra, indo e vindo, fazendo voltas e mais voltas.
Ao passar pelas mansões, os carros eram atacados por grandes nuvens de confete e serpentina jogados pelos moradores das casas. Cada palacete possuía carramachões, lindos e floridos, onde os familiares, geralmente as pessoas mais velhas, ficavam assistindo os jovens se divertindo nas ruas.
E a quantidade de serpentina era tanta que eu e Alberto, sentados ali perto do chão, reparávamos como elas ficavam enredadas nas rodas dos carros de tal forma que forçavam o carro a andar bem devagar...
De repente, surgia um conjunto musical em cima de algum carro e todos cantavam alguma marchinha.
E quando o corso parava, o pessoal e os grupos com fantasias iguais desciam dos carros e iam jogar confete e serpentina nos componentes dos outros carros, com muita alegria e diversão.
Essas são as minhas primeiras recordações sobre o carnaval.
Depois que eu e minha família nos mudamos para o Itaim-bibi, passaram-se muitos anos para que novamente o carnaval fosse um momento presente e significativo em nossas vidas. As comemorações eram limitadas ao centro de São Paulo, distantes de nosso bairro.
Mas, lá pelos idos da década de 30, já começávamos a comemorar com mais intensidade esse período de festas carnavalescas. Eu mesma lembro-me de me fantasiar de mexicana aos doze anos, em 1930. E foi nesse ano que minha tia Catarina, meu tio Alberto e eu,fantasiada e tudo, fomos assistir ao desfile de carros alegóricos no centro da cidade.
Esse desfile era lindo...era planejado e apresentado por organizações carnavalescas que caprichavam na beleza e no encantamento dos imensos carros. As mais famosas organizações eram "Os tenentes do diabo" e "Os felicianos", entre outros. Havia uma grande competição entre eles, pois o desfile era, na verdade um concurso de carnaval.
O desfile começava na Avenida São João, passava pela Rua Libero Badaró e se encerrava na Praça do Patriarca. Eram carros enormes puxados por seis cavalos enfeitados. Havia inúmeros temas para as alegorias. Lembro-me especialmente de um carro que era uma imensa melancia e cada semente era representada por uma moça, que acenava a todos os assistentes. E também um carro com um imenso abacaxi, que abria e fechava deixando aparecer as dançarinas que rodavam em seu interior. Uma lindeza. Havia sempre uma carro com um conjunto musical, com os componentes vestidos com camisas listradas e chapéus de palhinha animando a todos. O povo ia assistir e vibrava de encantamento pela beleza dos carros, das bailarinas, e da música .
Passados mais alguns anos eu já estava noiva de Nicola, mais exatamente em 1938, e junto com meu irmão, sua namorada, um amigo chamado Euclides e também sua namorada, resolvemos formar um bloco, isto é, iríamos sair juntos igualmente fantasiados . Confeccionamos seis fantasias idênticas para comemorar o carnaval. Eu e minha futura sogra preparamos e costuramos tudo: e a fantasia escolhida foi a de "russo"...uma fantasia fechada, quente em pleno mês de fevereiro... feita com cetim e arminho...Aliás acho que foi a primeira vez que vesti uma calça comprida...
Vejam só a foto de nosso bloco. Ela foi tirada em um estúdio na Avenida São João. Eu e Nicola somos o casal abaixado a frente do grupo.
E o domingo de carnaval chegou. Vestimo-nos orgulhosos...afinal éramos jovens, com vinte anos de idade, com muita alegria e energia para queimar...Todos fantasiados, Nicola e Alberto, meu irmão, nos levaram para passear no centro de São Paulo...imaginem só ...até mesmo o fato de embarcar no bonde vestidos daquela forma, já era motivo de divertimento . Chegamos ao centro, e assim como tantos outros grupos de jovens fantasiados, passeávamos pelas ruas, se divertindo, comentando, comparando, e observando tudo. Palhaços, colombinas, e as mais diversas fantasias podiam ser vistas pelas ruas de São Paulo. As comemorações naquele tempo era limitadas a se fantasiar e brincar com confetes e serpentinas, até mesmo em suas próprias casas, entre os vizinhos, os parentes e amigos e no máximo nas calçadas vizinhas.
Nós então voltamos para casa, e fizemos um baile familiar, com a participação de todos os parentes, brincando, cantando e dançando . Um carnaval simples, mas ainda com a inocência de uma juventude conduzida com padrões morais rígidos, mesmo assim uma juventude feliz...e como éramos felizes! Não existia a pressão da mídia e do marketing...podíamos, e tínhamos liberdade para isso, escolher nossa forma de conduta, sem questionamentos e comparações...sem necessidade de seguir a moda, seja de danças, ritmos ou roupas...um tempo de liberdade de ação que vejo, até com certa tristeza, a maioria de nossos jovens não terem oportunidade de usufruir.
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