Histórias de Dona Guiomar
escritas por Nereide S. Santa Rosa
Novembro 17 de 2000
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Superações e conquistas
Há poucas semanas tivemos a oportunidade de ver o desempenho dos paraatletas brasileiros em Sidney na Austrália. Foi emocionante.
Brasileiros que nos honraram representando nosso país com emoção, garra, alegria e perseverança.
Um exemplo para nossa sociedade.
Um exemplo de superação a todas as pessoas que se sentem infelizes por motivos tão pequenos as vezes perfeitamente contornáveis.
Pessoas limitadas por problemas físicos que são ilimitadas a nível psíquico e emocional...Apresentam uma maturidade e um conhecimento pela força de viver que nos espanta...que os enobrece...que nos emociona. Pessoas que merecem todo nosso respeito e nossas homenagens.
Abordo esse assunto porque as imagens que assisti na televisão me fizeram relembrar uma pessoa que morava e vivia no Itaim nos anos 30..
Uma pessoa muito conhecida dos moradores do Itaim-bibi...amável, simpática , comunicativa.
Uma pessoa que se tornou inesquecível para aqueles moradores dos velhos tempos...
Uma pessoa com sérias limitações físicas.
Seu nome era Anastácio...o bilheteiro Anastácio.
Sua história pessoal era por todos conhecida...uma história triste, dramática...que emocionava a todos que a ouviam.
Um história que acabou fazendo parte da cultura popular de nosso bairro...até hoje os moradores mais antigos o relembram.
Anastácio nasceu e foi abandonado na roda da Santa Casa. Sua deficiência física já era visível: não possuía braços e era anão.
Com o passar dos anos, Anastácio acabou sendo adotado por um carpinteiro chamado Antônio e sua mulher que moravam no Itaim-bibi. E assim Anastácio foi crescendo sempre participando da comunidade, andando pelos lugares mais conhecidos do bairro.
Quando se tornou adulto, começou a vender bilhetes e a fazer jogo do bicho... Era tão comunicativo, que cativava as pessoas a sua volta. Sua habilidade deixava muita gente espantada: escrevia e desenhava com os pés de forma perfeita. Fazia inúmeras coisas sozinho, sem pedir ajuda a ninguém. Vestia sempre um macacão adaptado a seu tamanho e as suas necessidades, andava descalço pois necessitava usar os dedos para fazer suas atividades e no inverno vestia uma espécie de capa comprida com capuz que chamava a nossa atenção pois quando caminhava tornava-se uma figura estranhamente diferente. Podia segurar uma garrafa com os pés, podia encher o copo e o bebia de uma vez só...para fumar seu cigarro ele o colocava em um suporte no bolso do macacão...gostava de jogar bocha, e o fazia com desenvoltura e animação. Sua fama já chegava até mesmo fora de nosso bairro...pois certa vez, o próprio presidente Getúlio Vargas esteve aqui e, em seu estilo populista, fez questão de cumprimentar o Anastácio o autorizando a fazer jogo do bicho...Aliás, antigamente, as oportunidades para pessoas como o Anastácio eram muito limitadas... apesar disso, ia vivendo, companheiro das brincadeiras dos jovens do Itaim antigo...sem preconceitos. Todos sabiam que o carinho de sua família havia sido fundamental para que Anastácio fosse feliz...
E hoje vemos tantas pessoas infelizes...muitas pessoas saudáveis jogadas pelas calçadas , ou fazendo pedidos entre os carros ... Pessoas que não imaginam como deveriam ser gratas por não possuírem limitações físicas...
Limitações que, apesar de parecer uma incoerência, transformam os seres humanos...os levam a se superar...
Hoje mesmo tive a oportunidade de ver um homem deficiente físico que construiu um skate para se deslocar entre as ruas da região do Ibirapuera, pois não possui pernas. Sua habilidade em atravessar as ruas dando impulsos com o braço é incrível...talvez ele devesse participar de uma paraolimpíada ... com certeza encontraria um esporte que se adequasse à sua habilidade ...
Andando por aí, pela nossa cidade ainda querida apesar de tudo, nós vemos essas cenas incríveis , cenas que nos levam a repensar valores, questionar metas, descobrir posturas...
Interessante, no entanto, é perceber que pessoas como Anastácio ficam inesquecíveis na memória popular... O nosso Itaim antigo permitia essa aproximação, uma convivência que fazia com que as pessoas se conhecessem e até mesmo, se respeitassem...
Hoje, com razão, temos medo e desconfiança...pelas ruas do Itaim encontramos algumas figuras nos chamam a atenção: sempre aquele mesmo mendigo com seu carrinho cheio de bandeiras (dos candidatos a prefeito) andando por aí, o rapaz mal vestido que desenha em pedaços de cartolina pelas calçadas...
Mas também ainda encontramos pessoas trabalhadoras que lutam com dificuldades tal como o Anastácio: quase sempre podemos ver um senhor cego que caminha impávido com sua bengala e vende bilhetes nas feiras e nas ruas do Itaim.
O tempo passa mas certos personagens de nosso dia a dia continuam a lutar contra suas dificuldades para conviver e viver em paz.
Antes de terminar, faço questão de registrar o nosso respeito a todos que superam suas dificuldades. Aproveito, também para reivindicar a atenção que essas especiais pessoas , deficientes físicos, devem merecer por parte das autoridades, dando condições urbanas para a sua locomoção, telefones e instalações públicas adequadas, calçadas menos esburacadas, enfim uma qualidade de vida melhor. Que os exemplos dos brasileiros premiados nas Paraolimpíadas seja significativo...um momento de reflexão para todos nós.
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