Histórias de Dona Guiomar
escritas por Nereide S. Santa Rosa
Outubro 06 de 2000
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Uma história paulistana.
As imagens da minha juventude necessariamente encontram referencias que ainda resistem e existem em nossa cidade. Imagens como o Viaduto do Chá ou o Teatro Municipal... a Avenida Paulista ou o Vale do Anhangabaú...
Ou então o Monumento as Bandeiras...imaginem que apesar de ser uma escultura, a lembrança que me remete este monumento, está relacionada a sons... isso mesmo, sons...
No final da década de 30 eu trabalhava na Rua José Maria Lisboa na Cartonagem Mazza e recordo-me bem que a avenida Brasil terminava exatamente na esquina com a Brigadeiro. Nesse tempo, eu costumava caminhar pela Brigadeiro, indo e vindo do meu trabalho em direção ao Itaim-bibi
A região do atual do Parque Ibirapuera era um campo cheio de mato com algumas trilhas que serviam de caminho para quem viesse da Vila Mariana em direção a região da estrada de Santo Amaro .....As trilhas contornavam o lago que já existia e que, na verdade , dava origem ao Córrego do Sapateiro.
Aliás, eu seguia a recomendação de minha mãe para não utilizar as trilhas perto do lago. Essa recomendação fazia jus principalmente depois de um acidente fatal que ali ocorreu: durante um forte temporal, alguns trabalhadores da fábrica de tecidos Calfat que caminhavam pela trilha, se abrigaram junto a árvores e uma grande enxurrada aconteceu , levando-os para dentro do córrego. Um acontecimento triste e que serviu por muito tempo como alerta para os trabalhadores daquela região.
Bem, como ia dizendo, eu seguia todos os dias pela rua Brigadeiro Luís Antônio. A proximidade do nosso bairro, Itaim-bibi, facilitava o acesso a meu trabalho e, quem diria, daria oportunidade de testemunhar a construção de uma obra de arte.
O fato foi o seguinte.
Era o ano de 1936.
Certo dia reparei que estavam colocando um tapume de madeira ali no final da Avenida Brasil. Um fato que me chamou a atenção. O que construiriam naquele local? pensei.
Alguns dias mais tarde, algo me chamou a atenção. Quando fazia o meu trajeto diário, comecei a ouvir e a reparar em um som especial. E o som vinha lá do tapume de madeira...
Não resisti a tentação...caminhei até lá e olhei por uma fresta... o que vi não indicava quase nada: apenas um grande barracão de madeira coberto, que escondia algo. O som vinha lá de dentro... contínuo, insistente e persistente.
Lembrem-se que, naquele tempo, o silêncio era parte de nossas vidas...um silêncio gostoso que nos permitia ouvir prazerosamente os sons do vento nas árvores, dos pássaros, das conversas calmas e tranquilas, ou até mesmo o toque dos sinos de igrejas ao longe.
Mas esse som especial que ali eu ouvia, e que, por muito e muito tempo, todas as pessoas que passavam por ali, iriam ouvir... era , simplesmente, do artista Vítor Brecheret esculpindo em uma enorme pedra de granito, o Monumento as Bandeiras...
Pois é, o artista esculpiu sua magnífica obra ali mesmo, onde hoje ainda está... imponente, forte, resistente... uma obra que simboliza a luta dos paulistas e sua perseverança em desbravar caminhos e se desenvolver através do espaço e do tempo.
A sua obra, iniciada em 1936, foi inaugurada em 25 de janeiro de 1953. A escultura tem 50 metros de comprimento, 16 de largura, 10 de altura e 37 figuras. Hoje, ao passarmos perto de uma obra dessa grandeza, devemos pensar sobre o artista, a sua mensagem, a sua expressão ... Eu, especialmente, lembro-me e penso naquele som tão simples, de seu cinzel tocando e moldando a pedra . Um som que , dia a após dia, eu ouvia e me envolvia em imaginação. O artista esculpia sua obra, como sua alma, a partir de sua percepção de mundo .
Tive o privilégio de presenciar e ser testemunha da criação de uma verdadeira obra de arte.
Não sei se os tantos outros transeuntes que por lá passavam, notavam o som ... ou mesmo se têm essas lembranças. No entanto, nós devemos saber que uma obra de arte é imortal e que a imagem supera os sons que ficam nas lembranças de cada um. E esse dia chegou. A imagem substituiu o som. A obra ficou pronta e a minha imaginação foi contemplada. O Monumento as Bandeiras é belo, simples, único...
Da próxima vez, que vocês passarem por lá ... tentem imaginar o artista e seu som... o artista e seu pensamento... o artista e sua obra. Talvez vocês lembrem-se desta pequena história paulistana e reafirmem a importância desta obra para São Paulo.
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