Histórias de Dona Guiomar
escritas por Nereide S. Santa Rosa
Julho, 28 de 2000
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Cenas de inverno

Tomando o meu chá quente com torradas, assisto atenta, ao noticiário da televisão. Nestes últimos dias são constantes as notícias sobre o frio, a geada, a neve, os recordes das baixas temperaturas e das vendas de aquecedores. As imagens mostram campos gelados, árvores congeladas, telhados e carros brancos, fumaças nas chaminés. Imagens distantes de quem vive em São Paulo. Só sentimos o frio...sem o romantismo e a beleza do ambiente de inverno. Quando muito, fazemos um "foundue" ou tomamos uma sopa quente, nos imaginando típicos moradores das montanhas. Apenas as pessoas super agasalhadas, usando gorros, cachecóis e luvas se assemelham aos paulistanos. Mas posso garantir que os moradores desta metrópole já se sentiram verdadeiros "europeus", tal como os nossos conterrâneos sulistas hoje se sentem.

A estação do frio aqui no Itaim, nas décadas de 20 e 30, era muito parecida com as imagens que hoje assisto na tv. Acordávamos de manhã , e a geada estava por toda a parte. Sobre os gramados, as folhas, as árvores e os telhados. As roupas no varal, duras e congeladas, eram pura realidade. A neblina misturada ao branco da geada era de uma beleza única. Uma visão fantástica. Lembro-me, especialmente, de uma cerca viva que existia na Rua João Cachoeira até o Córrego do Sapateiro, hoje Av Juscelino Kubistschek . Era uma cerca de espinheiros, que floria exatamente no inverno . As flores eram em grande quantidade e pareciam flocos de algodão perfumando toda a rua. Ao vê-las, floridas, em meio a neblina e a geada, a imaginação me enlevava... era muito fácil me imaginar em meio a flocos de neve, macios e suaves. Coisas de uma jovem romântica e sensível, com certeza.

A natureza era tão próxima de nossas vidas!!!

Campos, bosques, trilhas e caminhos. Flores, árvores, muitas árvores.

Quando eu ia ao centro, ficava observando os campos do Jardim Paulista. Quase não existiam residências. Imaginem que da Praça Gastão Liberal Pinto até a Avenida Brasil, havia apenas macelinhas, pequenas flores mas que, em grande quantidade se assemelhavam a um mar, colorido e suave . Naqueles instantes em que caminhava por uma trilha em meio as flores até a Rua Veneza para pegar o bonde, a beleza da paisagem amenizava o cansaço. Transformava as dificuldades em sonhos, tristezas em alegrias. Eram momentos de felicidade. Momentos de puro encantamento.

InvernoTive a oportunidade de assistir a construção da primeira capela da atual igreja São Gabriel, no mesmo local onde hoje ainda se encontra. E atrás da pequena igreja, só macelinhas, como se estivessem ali para enfeitar e compor um lindo quadro de Monet.  

Mas, as imagens diurnas às vezes eram totalmente alteradas quando a noite caía. Evidentemente as noites frias de inverno eram mais geladas ainda do que as de hoje. Para enfrentarmos o frio, as mulheres daquele tempo não usavam calças compridas ( hoje isso é inadmissível, mas é a pura verdade). Minha mãe comprava novelos de lã dos mascates e tricotávamos grossas meias, gorros e coletes para vestirmos e enfrentarmos o frio. Assim ficávamos dentro de casa, aquecidos e aconchegantes, tomando uma boa sopa, quentinha e saborosa, cobertos com mantas de lã.

Certa vez no entanto, um fato muito curioso, até mesmo engraçado, iria acontecer. Era uma noite fria e escura, mas a necessidade nos obrigou a enfrentá-la. Minha mãe precisava entregar um recibo para um de nossos inquilinos. O indivíduo iria se mudar na manhã seguinte. Escrevemos o tal recibo mas percebemos que não tínhamos estampilhas para oficializá-lo. Eu e Alberto, meu irmão, tivemos que sair pela noite escura para irmos comprar a tal das estampilhas em um contador que morava na Rua Bibi ( hoje Renato Paes de Barros) com a Rua do Vento ( bem sugestivo esse nome para uma noite fria, não acham? ) . Pois é, íamos pelo caminho , bem apressados, seguindo a Rua Joaquim Floriano, a única rua iluminada. Na altura da rua Bibi, viramos a esquina à esquerda. A rua estava toda esburacada com grandes valas, pois estavam construindo a rede de água. Fomos andando por um caminho estreito e difícil...não podíamos desistir...com os olhos bem abertos, caminhávamos devagar . Já estava ficando um pouco complicada aquela situação, no escuro e no frio. Então, quando estávamos a poucos metros da outra esquina, um vulto enorme saiu da vala...vagava sob um lençol branco, um pouco acima do chão... um verdadeiro fantasma, igualzinho aos de histórias de suspense! Foi uma gritaria... Alberto correu para frente em direção a casa do contador e eu corri em direção à minha casa....não olhei para trás em nenhum momento até chegar ao meu portão. Lá chegando contei o fato para minha mãe que saiu a procura de Alberto. No meio do caminho, o encontrou junto com o contador, que segurava um revólver e as estampilhas. E nada do fantasma ... Eles o haviam procurado, mas acho que ele também se assustou com nossos gritos e sumiu pela vala da rua... voltando para seu esconderijo! Hoje fico pensando que deveria ser um dos trabalhadores que estava dormindo ali mesmo, se protegendo do frio. Mas, por via das dúvidas, por algum tempo não passamos mais pela rua do Vento...

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