Histórias de Dona Guiomar
escritas por Nereide S. Santa Rosa
Junho 08, 2001
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Já houve tempos piores...

Nos tempos em que a cozinha era movida somente com a energia da dona de casa, as mínimas ações corriqueiras eram envoltas em muito trabalho. Lá pelos idos da década de 30, quando eu era uma jovem solteira e estudante, lembro-me de ver minha mãe trabalhando muito, mas muito mesmo, no espaço reservado ao cozimento de nossos alimentos.

Naqueles tempos morávamos em uma pequena chácara no Itaim-bibi. Isso significa que nossos costumes estavam muito relacionados com as condições do ambiente em que vivíamos. Morando em um “bairro” considerado afastado do centro, o Itaim-bibi  e seus arredores não dispunham de quase nenhuma regalia e progresso que já eram presentes nas mansões dos aristocratas da avenida Paulista, por exemplo.

Até mesmo preparar o café dependia de costurar o coador de pano para colocá-lo no tripé. Para se comprar o pó de café, esperávamos a caminhonete do Café Jardim que todas as semanas estacionava na avenida Joaquim Floriano, ainda de terra.  Vinha tocando um “jingle” já conhecido em nosso bairro e os moradores lá iam comprar seu café saboroso.      

A nossa alimentação, por exemplo, era muito saudável. Quase nenhuma fritura, muito cozido e pouca carne. Tínhamos tudo que precisávamos na nossa chácara: verduras, legumes, frutas, ovos e animais. No entanto, para cuidarmos e usufruirmos de tudo isso, a conservação e os cuidados eram imensos. Coisas como regar as plantações, cortar o mato, verificar as pragas, varrer e lavar o  galinheiro, o cercado dos coelhos e dos pequenos leitões, alimentá-los. Tudo isso era feito com muita energia.

E o preparo do almoço e do jantar demandava um conhecimento específico. Como por exemplo, usar o fogão a lenha: logo cedo recolhíamos galhos de árvores. Secávamos e cortávamos os galhos para formar os feixes, pois estes eram o combustível do nosso fogão que ficava com o fogo aceso o dia inteiro, esquentando a chapa de ferro colocada acima das muretas de tijolo. Assim, o café podia ser preparado a qualquer momento do dia. Algum tempo depois, esse trabalho foi amenizado pois começou a passar o carvoeiro pela ruas, vendendo o carvão já pronto para o uso. As cinzas do fogão também eram aproveitadas pelas donas de casa: misturadas ao sabão, serviam para lavar e arear as panelas de alumínio, expostas como peças de valor na enorme prateleira da cozinha. Mas haviam também as panelas de ferro. É simplesmente inesquecível o paladar de certos alimentos que minha mãe preparava, principalmente aos domingos, nas suas famosas panelas de ferro. A carne assada com as batatas coradas era o manjar dos deuses para nós, que trabalhávamos a semana inteira e aos domingos nos deliciávamos com o vasto almoço.

A couve colhida fresquinha preparada  junto com arroz e o feijão também era outro prato muito apreciado. Comer verduras  todos os dias acarretava mais e mais energia da dona de casa: colher, escolher e lavar todas as folhas era tarefa comum e necessária. Nós nunca guardávamos os maços de verduras...isso era algo inimaginável para quem tinha o costume de apreciá-las com todo o sabor de frescura e verdor.

Quanto aos animais, cada um era preparado com suas diversas características.

Os frangos e galinhas eram preservados para serem cozidos quando alguém da família adoecesse, pois as canjas e os franguinhos cozidos eram considerados ideais para a recuperação de uma simples gripe. E quando isso ocorria, lá íamos nós puxar o pescoço de alguma galinácea escolhida a dedo, para depois depená-la no grande caldeirão de água fervente.

Outro animal apreciado pela nossa família era o coelho. Minha mãe sempre o costumava cozinhar. Era um dos seus pratos preferidos. Eu, especialmente tinha a tarefa de mantê-los vivos  alimentando-os com os arbustos que colhia nas plantações que existiam na rua João Cachoeira. Quando era chegado o dia, minha mãe matava um dos coelhos, o escalpelava retirando a pele inteira, que era salgada e exposta para secar. Em seguida ela preparava o ensopado com bastante temperos à moda portuguesa e todos se refestelavam.

A banha servia de tempero dos alimentos. Comprávamos o toucinho no açougue e o derretíamos, assim obtendo a banha que  era colocada em um pote de louça para ir sendo usada na cozinha. Do toucinho também retirávamos o torresmo, que geralmente era utilizado para fazer pão. Você já comeu pão de torresmo? É simplesmente delicioso.

Além do fogão a lenha, que era grande, existia o fogão de carvão que era menor e podia ser comprado em qualquer empório. Tratava-se de uma lata de dezoito litros com uma abertura para se colocar o carvão dentro, sendo que em cima havia um beiral de quatro tijolos que seguravam uma grelha...Eu tive um fogão desses e costumava deixar o carvão aceso a tarde inteira, cozinhando o feijão bem devagarinho...

Outra atividade necessária e comum nas velhas cozinhas era o ato de lavar  os pratos de louça. Usava-se a bacia da água retirada do poço. Em nossa casa, tínhamos dois poços para retirar água: um para uso da limpeza e outro revestido de tijolos cuja água  era utilizada no interior da casa, especialmente na cozinha.  Puxávamos a corda que movia a carretilha trazendo o balde cheio de água. Depois enchia-se uma bacia ao lado do poço ou então carregávamos para dentro de casa...Naquele tempo, no começo da década de 30, não existiam torneiras em todos os lugares...

Como vocês podem perceber, a energia que movia nossa cozinha provinha das mãos e da disposição de minha mãe e das mulheres dos velhos tempos de São Paulo... Especialmente agora, que tivemos de desligar todos os eletrodomésticos que nos facilitavam a vida, fica aqui um exemplo de que já houve tempos piores, apesar de tudo... As dificuldades que nós, as atuais donas de casa, estamos passando com o racionamento de energia não chegam aos pés das dificuldades que as antigas donas de casa passavam. E as pessoas, mesmo assim, eram felizes e buscavam realizar da melhor forma as suas necessidades. E as realizavam. 

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